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sexta-feira, 26 de junho de 2015

Aventuras Enxadrísticas na Noruega - Norway Open 2015


Ontem chegou ao fim o super-torneio Norway Chess, cheio de xadrez combativo, grandes peripécias e momentos emocionantes. Eis aí um torneio que será muito relembrado, não só pela força objetiva dos jogadores, mas por ter sido o torneio em que o campeão mundial, a máquina que é Magnus Carlsen, teve um desmoronamento, em um desastre que para ele é sem precedentes.O drama começou na primeira rodada. Carlsen, após uma longa e típica partida de quase seis horas, havia finalmente obtido uma posição vitoriosa contra o Grande Mestre búlgaro, Veselin Topalov. Chegou-se no lance 60: Dg5+. Topalov respondeu com ...Rf7. Os computadores já indicavam a vitória próxima, os comentaristas tinham o resultado como já estabelecido... E no relógio de Carlsen os segundos foram se esgotando: 3, 2, 1... e acabou-se o tempo
Posição um lance antes decair a seta das brancas
0-1, vitória do búlgaro!


Os árbitros chegam para dizer a Carlsen que ele perdeu a partida. Topalov nem sabe para onde olhar.

O que se passara? Bem, como foi imediatamente explicado ao chocado campeão mundial por árbitros não menos surpresos, esse torneio não tinha o acréscimo costumeiro de +15 minutos ao lance 60. O único incremento depois da 1 hora de acréscimo no lance 40 é o de 30 segundos por lance. E Carlsen, por uma daquelas coincidências infelizes, havia chegado atrasado para a rodada, não ouvindo assim a advertência dos árbitros quanto ao incomum controle de tempo. Carlsen teve um comportamento notável em relação ao incidente, assumindo a culpa por não ter visto o controle de tempo, mas comentando que foi “estranho” que os jogadores não tivessem sido avisados mais cuidadosamente sobre um controle de tempo nunca antes usado. Mas não creio que a culpa tenha mesmo sido dele. Como disse o GM inglês Nigel Short, o campeão mundial ter que perguntar, a cada torneio, qual é o controle de tempo é como atletas tendo que perguntar: “Qual a distância que vamos correr hoje?”
Um infortúnio, mas ninguém teria previsto o que se seguiu para o norueguês. Na segunda rodada, jogando de pretas contra o ítalo-americano Fabiano Caruana, Carlsen tentou uma linha menos comum em sua defesa Berlim e caiu numa preparação que, combinada com uma falha tática de sua parte, o forçou a abandonar no lance 45. Um desastre para a Noruega, sempre e com boa razão orgulhosa de seu campeão. Todos os jornais noruegueses traziam Carlsen Começa com 0 em 2 na capa principal. Carlsen descreveu essa sua segunda derrota como “embaraçosa”, mas não deixou de dar crédito ao Caruana por uma partida bem jogada.

Capa da página da TV2 norueguesa: Pior começo de Carlsen em 5 anos

Terceira rodada. Carlsen, Agora Você Precisa se Levantar dizia uma manchete norueguesa. Ele bem que tentou! Mas após ter conseguido vantagem decisiva numa partida onde o holandês Anish Giri sacrificara um peão por duvidosa iniciativa, Carlsen não achou o arremate extremamente preciso e “computadorístico”, acabou liquidando para um final empatado, e, após uma defesa precisa do Giri, nada mais obteve que o meio ponto.
Nada está tão ruim que não possa piorar, certo? Viswanathan Anand, o campeão indiano que Magnus duas vezes derrotou em encontros pelo título mundial, o enfrentava de brancas na quarta rodada. Entre esses dois o score, desde 2010, era de uma vitória para Anand, nove (!) para Carlsen, e 25 empates. Mas dessa vez Anand brilhou, conseguindo um ataque muito forte numa Ruy Lopez fechada e ganhando em menos de 40 lances.  
Após isso um dia de descanso. “O Carlsen já deve estar traumatizado agora”, foi o comentário de Nigel Short. Mas voltando o torneio, na quinta rodada veio a primeira vitória – graças, em grande parte, ao apuro de tempo do seu oponente, o russo Grischuk – mas vitória de qualquer forma. E no próximo dia o clássico Carlsen – Nakamura. No começo do torneio o grande mestre americano, arrogante como sempre, dissera em entrevista à TV norueguesa que achava o estilo de Carlsen “seco”. Naka, vale notar, é o grande freguês de Carlsen, com incríveis 11 derrotas e somente 2 empates em suas 13 partidas clássicas. Mas dessa vez ele se segurou, e Carlsen foi forçado a reconhecer que até do Nakamura não se ganha sempre. Na sétima rodada, jogando de pretas contra o francês Vachier Lagrave, Carlsen aceitou dois peões do oponente, embora este tivesse perigosa iniciativa. Mas nada aconteceu: encontrando-se em uma posição desconhecida contra tamanho oponente, Vachier agarrou a oportunidade de forçar uma repetição em menos de 20 lances.
Uma segunda vitória veio Carlsen na oitava rodada, dessa vez contra Aronian. O armênio não está em sua melhor forma já faz certo tempo, e não achou a única defesa tática que segurava sua posição. No entanto Carlsen não ficou nada satisfeito com essa partida, comentando que, apesar do resultado positivo, foi a que ele pior jogou no torneio.
Carlsen e Hammer são grandes amigos, mas no tabuleiro a estória é outra. Aqui o momento, mostrado ao vivo na tv norueguesa, em que Carlsen abandona.

Última rodada, e aparentemente a crise passou. Carlsen enfrenta de pretas o seu compatriota, grande amigo e treinador durante o campeonato mundial contra Anand, o pitoresco Jon Ludvig Hammer. Este tem quase 200 pontos de rating menos! Mas mesmo isso parece pouca justificativa para a forma como Carlsen joga a abertura: 4...f6?! e 5...dxc4? deixam-no em posição francamente inferior. E a partir daí nada melhora: Carlsen joga mal, Hammer aproveita sua chance, e após 34 lances é hora de assinar as planilhas e reconhecer que às vezes as coisas simplesmente dão errado, mesmo para Carlsen. De longe, o pior torneio de sua carreira, e será interessante ver como ele reage a isso nos próximos meses. Pessoalmente, duvido que o torneio tenha abalado significativamente a sua confiança em si, e penso que o veremos recuperar esses 20 pontos de rating sem maiores problemas no decorrer dos próximos  meses.

Carsen sem dúvida foi o principal assunto do torneio, mas vale a pena lembrar os outros. Vishy Anand mostrou-se em excelente forma: três vitórias – uma delas contra a sua nêmesis de anos recentes – seis empates, e nunca uma posição inferior o deixaram em segundo lugar do torneio. Como comentou o grande mestre Alexandre Grischuk, Anand parece ter mesmo deixado para trás a má fase em que tinha estado por muito tempo – o russo aventou mesmo que Anand pode estar em seu ápice agora, ou encaminhando-se para lá. E de fato em lugar algum se ouve agora todos aqueles que, há dois anos, eram tão veementes em sua opinião que era mais do que hora do ex-campeão mundial se aposentar. Anand, aos 45 anos de idade e de longe o veterano dentre os atuais top 10 — a média de idade entre estes sendo de 30 anos de idade — ocupa agora o honroso posto de segundo melhor do mundo.


Anand, após sua vitória contra Carlsen, sendo entrevistado por Yasser Seirawan

Hikaru Nakamura teve igualmente um excelente torneio: com vitórias sobre Caruana, Hammer e Aronian e sem perder partida alguma, dividiu o segundo lugar com 6 pontos. Mas a surpresa do torneio foi Veselin Topalov, que há tempos não tinha um resultado tão forte. Após o inesperado “presente” da primeira rodada, Topalov demonstrou sua velha forma: com três vitórias consecutivas nas 3º, 4º e 5º rodadas, sobre Vachier-Lagrave, Aronian e Hammer, pôs-se logo na liderança do torneio. Mais uma vitória sobre Grischuk na 7º rodada, e apenas uma derrota (contra Anish Giri), deixaram-no em posição confortável na última rodada, quando enfrentou Anand com as peças brancas. O empate bastava para selar a vitória, e Topa jogou uma variante tranquila, repetindo exatamente a partida Ivanchuk – Carlsen do começo deste ano, onde as pretas são levadas a repetir lances logo que acaba abertura. Agora ele ocupa o 3º lugar no ranking mundial, apenas 0.1 pontos atrás de Anand, com um rating impressionante de 2816.


Os noruegueses certamente não morrem de amores por esse tipo aí. Aqui a manchete diz: Nakamura critica Carlsen: - Ele é um jogador entediante

Não só drama e aventuras, mas alguns momentos engraçados aconteceram também. Uma fonte de diversões foi a inovadora “cabine de confissão”. Esta consiste de uma saleta aparelhada com câmera que é deixada à disposição dos jogadores durante as rodadas. No decorrer da partida um jogador pode se dirigir a ela e comentar sobre a partida, dizer como está se sentindo, etc. A gravação é a seguir transmitida na TV ao vivo – isso mesmo, na Noruega há canais que transmitem xadrez ao vivo!  Vista com circunspecção nas primeiras rodadas, ela acabou virando bastante popular já mais para o fim do torneio. Uma das pérolas foi a tragicomédia de Hammer, que está virando rapidamente o segundo enxadrista mais popular da Noruega. Em sua partida com o Topalov ele obteve uma grande iniciativa com sacrifício de cavalo, e imediatamente se dirigiu à cabine e comentou: “Estou muito excitado! Dei um cavalo por dois peões. Minhas peças estão muito bem colocadas, e as dele muito passivas. Já não vejo defesa  para ele agora (...)”. Sua candura não foi recompensada: Topalov defendeu a posição inferior e obteve vantagem. Hammer viu-se na situação oposta e teve que defender, mas quando, no lance 74 e após seis horas de jogo, o empate era óbvio e estava a dois lances de distância, ele “capivarou” feio: (diagrama)
74.f5! obviamente empata, forçando a troca do último peão. Ao invés, Hammer jogou 74.Rc6??, que perde imediatamente após o simples 74...Re6
No entanto isso não o impediu de continuar indo à cabine de confissão, para grande entretenimento da plateia norueguesa. Na oitava rodada tivemos uma “confissão” muito divertida do Carlsen. Ele foi à cabine e riu sobre a partida Anand – Hammer: “Depois da partida com Grischuk, Hammer comentou que todos estavam jogando a Inglesa contra ele. E eu disse: ‘Agora todos vão jogar a inglesa contra você’.” Hammer respondeu: “Não, não o Anand. Ele não joga aberturas ruins.” E é claro que o Anand, de brancas, jogou uma inglesa (e ganhou)! 
Pobre Hammer! De que adianta enormes preparações contra  1.d4 e 1.e4, se todos ficam jogando essa abertura ruim?
Carlsen rindo frente à câmera: "Anand jogou a inglesa..."
Um torneio notável, e muito interessante de acompanhar. Carlsen teve um péssimo desempenho, mas certamente voltará com bons resultados logo, no super-torneio de São Luís. E para mim o melhor foi ver a velha guarda, Anand e Topalov, levando os primeiros lugares na frente de jogadores muito mais jovens. Essa foi a terceira edição do Norway Chess, que parece ser um torneio que veio para ficar. Ou ao menos, como disse o presidente da federação norueguesa de xadrez, até que o Carlsen consiga ganhá-lo! Podemos, assim, contar com esse torneio por muito tempo ainda.


- Anand, quando foi última vez que alguém lhe perguntou quando vai se aposentar? 

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O Match do Século vem aos cinemas



Em alguns meses nós enxadristas teremos uma razão especial para ir aos cinemas: vem às telas o filme Pawn Sacrifice (sem título em português ainda), que conta a história do lendário campeão americano Bobby Fischer e do campeonato mundial que ficou conhecido como "match do século", quando ele finalmente derrubou a supremacia histórica dos soviéticos no xadrez.

Abaixo o trailer.


O filme é dirigido por Edward Zwick (O Último Samurai, alguém?), e promete muito, tendo excelentes atores nos papeis principais: Liev Schreiber faz o campeão russo Boris Spassky, com quem de fato tem uma considerável semelhança fisionômica. E no papel de Bobby Fischer está o aparentemente imortal Tobey Maguire — imortal, sim, pois não é que ele nada mudou desde seus tempos de Homem Aranha!

O Match do Século


Para quem não sabe a história deste campeonato mundial, ela é basicamente assim: até 1970, em plena Guerra Fria, a União Soviética era rainha indisputada no universo enxadrístico: com centenas de clubes, dezenas de grandes-mestres, e frequentes torneios apoiados pela máquina soviética, era uma força tremenda, sem par. Dos melhores dez jogadores, nada menos que sete eram soviéticos. Os outros eram o dinamarquês Bent Larsen e o húngaro Lajos Portisch. E um estranho norte-americano chamado Robert James Fischer. Os Estados Unidos, como nação enxadrística, eram inexistentes! Pois bem. A partir de 1970, esse jovem yankee, que já vinha derrotando os mais fortes, dominou o mundo enxadrístico e bateu sem respeito nos melhores soviéticos. O seu caminho triunfante levou ao almejado embate pelo título mundial que mostra o filme, onde incrivelmente um norte-americano desafiou e derrotou os soviéticos em sua própria grande especialidade.
Spassky e Fischer durante o match, 1972

Um aparente ponto fraco do filme é que o Tobey não se parece lá muito com o campeão americano, o que de fato tem levado muita gente a criticar o filme antes mesmo de lhe dar uma chance. Mas aqui  é bom mencionar que se não fosse pelo próprio Tobey Maguire o filme nunca teria sido produzido: o ator é um grande apreciador do xadrez, e foi ele quem deu origem ao projeto, há já quase dez anos! Para mim, creio que a melhor forma de assistir ao filme é não se fazendo demasiadas comparações com a história real, e simplesmente aproveitar essa raridade que é um filme inteiramente focado no xadrez.



 Comparação: acima Bobby Fischer, abaixo Tobey Maguire o interpreta




Tendo visto apenas o trailer, estou ansioso para a saída do filme — cujo lançamento no Brasil, aliás, ainda não está marcado; nos EUA sai 13 de Setembro —, e não há dúvida de que este será um clássico do xadrez cinemático, no mínimo à altura de A Defesa Luzhin e Lances Inocentes. Mas gostaria de mencionar duas objeções que tenho. A primeira é sobre a figura do Spassky. Este sempre foi conhecid por ser um gentleman perfeito, e é difícil imaginá-lo comportando-se da forma antagonística que o trailer parece nos mostrar.
"Você não parece estar bem, Robert James" — algo que o Spassky real jamais diria
O segundo problema é que o filme, sendo sobre o Bobby Fischer — notoriamente um jogador não tão, digamos, equilibrado —, só vem reforçar os estereótipos com os quais sempre nos deparamos: xadrez deixa as pessoas malucas; enxadristas são lunáticos obcecados! Claro que a maior parte dos enxadristas profissionais são pessoas centradas e, até onde se vê, bastante "normais". E é claro que nós outros, enxadristas em um nível mais capivaresco menos forte, sabemos que somos absolutamente normais! Não...?