Ontem chegou ao fim o super-torneio Norway Chess, cheio de xadrez combativo, grandes peripécias e momentos emocionantes. Eis aí um torneio que será muito relembrado, não só pela força objetiva dos jogadores, mas por ter sido o torneio em que o campeão mundial, a máquina que é Magnus Carlsen, teve um desmoronamento, em um desastre que para ele é sem precedentes.O drama começou na primeira rodada. Carlsen, após uma longa e típica partida de quase seis horas, havia finalmente obtido uma posição vitoriosa contra o Grande Mestre búlgaro, Veselin Topalov. Chegou-se no lance 60: Dg5+. Topalov respondeu com ...Rf7. Os computadores já indicavam a vitória próxima, os comentaristas tinham o resultado como já estabelecido... E no relógio de Carlsen os segundos foram se esgotando: 3, 2, 1... e acabou-se o tempo
Posição um lance antes decair a seta das brancas |
Os árbitros chegam para dizer a Carlsen que ele perdeu a partida. Topalov nem sabe para onde olhar.
O que se passara? Bem, como foi imediatamente
explicado ao chocado campeão mundial por árbitros não menos surpresos, esse
torneio não tinha o acréscimo costumeiro de +15 minutos ao lance 60. O único
incremento depois da 1 hora de acréscimo no lance 40 é o de 30 segundos por
lance. E Carlsen, por uma daquelas coincidências infelizes, havia chegado
atrasado para a rodada, não ouvindo assim a advertência dos árbitros quanto ao
incomum controle de tempo. Carlsen teve um comportamento notável em relação ao
incidente, assumindo a culpa por não ter visto o controle de tempo, mas
comentando que foi “estranho” que os jogadores não tivessem sido avisados mais
cuidadosamente sobre um controle de tempo nunca antes usado. Mas não creio que
a culpa tenha mesmo sido dele. Como disse o GM inglês Nigel Short, o campeão
mundial ter que perguntar, a cada torneio, qual é o controle de tempo é como
atletas tendo que perguntar: “Qual a distância que vamos correr hoje?”
Um infortúnio, mas ninguém
teria previsto o que se seguiu para o norueguês. Na segunda rodada, jogando de
pretas contra o ítalo-americano Fabiano Caruana, Carlsen tentou uma linha menos
comum em sua defesa Berlim e caiu numa preparação que, combinada com uma falha
tática de sua parte, o forçou a abandonar no lance 45. Um desastre para a
Noruega, sempre e com boa razão orgulhosa de seu campeão. Todos os jornais noruegueses
traziam Carlsen Começa com 0 em 2 na
capa principal. Carlsen descreveu essa sua segunda derrota como “embaraçosa”,
mas não deixou de dar crédito ao Caruana por uma partida bem jogada.
Capa da página da TV2 norueguesa: Pior começo de Carlsen em 5 anos |
Terceira rodada. Carlsen, Agora Você Precisa se Levantar
dizia uma manchete norueguesa. Ele bem que tentou! Mas após ter conseguido
vantagem decisiva numa partida onde o holandês Anish Giri sacrificara um peão por
duvidosa iniciativa, Carlsen não achou o arremate extremamente preciso e “computadorístico”,
acabou liquidando para um final empatado, e, após uma defesa precisa do Giri, nada
mais obteve que o meio ponto.
Nada está tão ruim
que não possa piorar, certo? Viswanathan Anand, o campeão indiano que Magnus
duas vezes derrotou em encontros pelo título mundial, o enfrentava de brancas
na quarta rodada. Entre esses dois o score, desde 2010, era de uma vitória para
Anand, nove (!) para Carlsen, e 25 empates. Mas dessa vez Anand brilhou, conseguindo
um ataque muito forte numa Ruy Lopez fechada e ganhando em menos de 40 lances.
Após isso um dia de
descanso. “O Carlsen já deve estar traumatizado agora”, foi o comentário de
Nigel Short. Mas voltando o torneio, na quinta rodada veio a primeira vitória –
graças, em grande parte, ao apuro de tempo do seu oponente, o russo Grischuk –
mas vitória de qualquer forma. E no próximo dia o clássico Carlsen – Nakamura. No
começo do torneio o grande mestre americano, arrogante como sempre, dissera em
entrevista à TV norueguesa que achava o estilo de Carlsen “seco”. Naka, vale
notar, é o grande freguês de Carlsen, com incríveis 11 derrotas e somente 2
empates em suas 13 partidas clássicas. Mas dessa vez ele se segurou, e Carlsen
foi forçado a reconhecer que até do Nakamura não se ganha sempre. Na sétima
rodada, jogando de pretas contra o francês Vachier Lagrave, Carlsen aceitou
dois peões do oponente, embora este tivesse perigosa iniciativa. Mas nada aconteceu:
encontrando-se em uma posição desconhecida contra tamanho oponente, Vachier agarrou
a oportunidade de forçar uma repetição em menos de 20 lances.
Uma segunda vitória
veio Carlsen na oitava rodada, dessa vez contra Aronian. O armênio não está em
sua melhor forma já faz certo tempo, e não achou a única defesa tática que
segurava sua posição. No entanto Carlsen não ficou nada satisfeito com essa
partida, comentando que, apesar do resultado positivo, foi a que ele pior jogou
no torneio.
Carlsen e Hammer são grandes amigos, mas no tabuleiro a estória é outra. Aqui o momento, mostrado ao vivo na tv norueguesa, em que Carlsen abandona. |
Última rodada, e
aparentemente a crise passou. Carlsen enfrenta de pretas o seu compatriota,
grande amigo e treinador durante o campeonato mundial contra Anand, o pitoresco
Jon Ludvig Hammer. Este tem quase 200 pontos de rating menos! Mas mesmo isso
parece pouca justificativa para a forma como Carlsen joga a abertura: 4...f6?!
e 5...dxc4? deixam-no em posição francamente inferior. E a partir daí nada
melhora: Carlsen joga mal, Hammer aproveita sua chance, e após 34 lances é hora
de assinar as planilhas e reconhecer que às vezes as coisas simplesmente dão
errado, mesmo para Carlsen. De longe, o pior torneio de sua carreira, e será
interessante ver como ele reage a isso nos próximos meses. Pessoalmente, duvido
que o torneio tenha abalado significativamente a sua confiança em si, e penso
que o veremos recuperar esses 20 pontos de rating sem maiores problemas no
decorrer dos próximos meses.
Carsen sem dúvida
foi o principal assunto do torneio, mas vale a pena lembrar os outros. Vishy
Anand mostrou-se em excelente forma: três vitórias – uma delas contra a sua
nêmesis de anos recentes – seis empates, e nunca uma posição inferior o
deixaram em segundo lugar do torneio. Como comentou o grande mestre Alexandre
Grischuk, Anand parece ter mesmo deixado para trás a má fase em que tinha
estado por muito tempo – o russo aventou mesmo que Anand pode estar em seu ápice
agora, ou encaminhando-se para lá. E de fato em lugar algum se ouve agora todos
aqueles que, há dois anos, eram tão veementes em sua opinião que era mais do que
hora do ex-campeão mundial se aposentar. Anand, aos 45 anos de idade e de longe
o veterano dentre os atuais top 10 — a média de idade entre estes sendo de 30
anos de idade — ocupa agora o honroso posto de segundo melhor do mundo.
Anand, após sua vitória contra Carlsen, sendo entrevistado por Yasser Seirawan |
Hikaru Nakamura
teve igualmente um excelente torneio: com vitórias sobre Caruana, Hammer e
Aronian e sem perder partida alguma, dividiu o segundo lugar com 6 pontos. Mas
a surpresa do torneio foi Veselin Topalov, que há tempos não tinha um resultado
tão forte. Após o inesperado “presente” da primeira rodada, Topalov demonstrou
sua velha forma: com três vitórias consecutivas nas 3º, 4º e 5º rodadas, sobre
Vachier-Lagrave, Aronian e Hammer, pôs-se logo na liderança do torneio. Mais
uma vitória sobre Grischuk na 7º rodada, e apenas uma derrota (contra Anish
Giri), deixaram-no em posição confortável na última rodada, quando enfrentou
Anand com as peças brancas. O empate bastava para selar a vitória, e Topa jogou
uma variante tranquila, repetindo exatamente a partida Ivanchuk – Carlsen do
começo deste ano, onde as pretas são levadas a repetir lances logo que acaba
abertura. Agora ele ocupa o 3º lugar no ranking mundial, apenas 0.1 pontos
atrás de Anand, com um rating impressionante de 2816.
Os noruegueses certamente não morrem de amores por esse tipo aí. Aqui a manchete diz: Nakamura critica Carlsen: - Ele é um jogador entediante |
Não só drama e
aventuras, mas alguns momentos engraçados aconteceram também. Uma fonte de
diversões foi a inovadora “cabine de confissão”. Esta consiste de uma saleta aparelhada
com câmera que é deixada à disposição dos jogadores durante as rodadas. No
decorrer da partida um jogador pode se dirigir a ela e comentar sobre a
partida, dizer como está se sentindo, etc. A gravação é a seguir transmitida na
TV ao vivo – isso mesmo, na Noruega há canais que transmitem xadrez ao
vivo! Vista com circunspecção nas
primeiras rodadas, ela acabou virando bastante popular já mais para o fim do
torneio. Uma das pérolas foi a tragicomédia de Hammer, que está virando
rapidamente o segundo enxadrista mais popular da Noruega. Em sua partida com o
Topalov ele obteve uma grande iniciativa com sacrifício de cavalo, e
imediatamente se dirigiu à cabine e comentou: “Estou muito excitado! Dei um
cavalo por dois peões. Minhas peças estão muito bem colocadas, e as dele muito
passivas. Já não vejo defesa para ele
agora (...)”. Sua candura não foi recompensada: Topalov defendeu a posição
inferior e obteve vantagem. Hammer viu-se na situação oposta e teve que
defender, mas quando, no lance 74 e após seis horas de jogo, o empate era óbvio e estava a
dois lances de distância, ele “capivarou” feio: (diagrama)
74.f5! obviamente empata, forçando a troca do último peão. Ao invés, Hammer jogou 74.Rc6??, que perde imediatamente após o simples 74...Re6 |
No entanto isso não
o impediu de continuar indo à cabine de confissão, para grande entretenimento
da plateia norueguesa. Na oitava rodada tivemos uma “confissão” muito divertida
do Carlsen. Ele foi à cabine e riu sobre a partida Anand – Hammer: “Depois da
partida com Grischuk, Hammer comentou que todos estavam jogando a Inglesa
contra ele. E eu disse: ‘Agora todos vão jogar a inglesa contra você’.” Hammer
respondeu: “Não, não o Anand. Ele não joga aberturas ruins.” E é claro que o
Anand, de brancas, jogou uma inglesa (e ganhou)!
Pobre Hammer! De que adianta enormes preparações contra 1.d4 e 1.e4, se todos ficam jogando essa abertura ruim?
Um torneio notável, e muito interessante de acompanhar. Carlsen teve um péssimo desempenho, mas certamente voltará com bons resultados logo, no super-torneio de São Luís. E para mim o melhor foi ver a velha guarda, Anand e Topalov, levando os primeiros lugares na frente de jogadores muito mais jovens. Essa foi a terceira edição do Norway Chess, que parece ser um torneio que veio para ficar. Ou ao menos, como disse o presidente da federação norueguesa de xadrez, até que o Carlsen consiga ganhá-lo! Podemos, assim, contar com esse torneio por muito tempo ainda.Pobre Hammer! De que adianta enormes preparações contra 1.d4 e 1.e4, se todos ficam jogando essa abertura ruim?
Carlsen rindo frente à câmera: "Anand jogou a inglesa..." |
- Anand, quando foi última vez que alguém lhe perguntou quando vai se aposentar? |